O Drama do Ter e do Ser

Narram as páginas da mitologia grega que quando Dionísio, o deus do vinho e do prazer, ofereceu ao rei Midas a possibilidade de fazer qualquer pedido, em gratidão à acolhida de Sileno, um dos seus mestres, o soberano não titubeou em pedir: -Desejo que tudo que eu toque vire ouro.

O rei Midas pensava que dessa forma estaria livre de todas as misérias e dificuldades pessoais e do seu reino, quando em verdade atraía para si um problema ainda maior, pois ao tocar seus alimentos e a própria filha, viu desesperado que tudo tomava a forma do metal nobre.

Recordando essas páginas, temos que refletir: será que o ser humano da atualidade encontra-se livre das ilusões que nos apresenta a narrativa mitológica?Basta uma rápida observação para constatar que não.

Desconhecendo a si mesmo, de forma geral as conquistas de ordem externa têm sido priorizadas, em detrimento da jornada de autoconhecimento, que vai sendo postergada.

Em um mundo onde o culto ao ego possui primazia, o ter ganha destaque. Não é à toa que a Ditadura do Consumo possui inúmeros adeptos, porquanto o desconhecimento do próprio valor faz com que o atribuamos às coisas, que pela sua própria provisoriedade trazem sua quota de angústia aos que a elas se apegam , tornando-os escravos daquilo que pensam possuir. Enquanto ignoro a mim mesmo, busco valor na marca que visto, no carro que me conduz e no status que consigo alcançar. E me desespero com tudo aquilo que não posso ter.

Essa neurose do consumo vai sendo incutida em toda cultura, e desde cedo as crianças vão sendo adestradas às compras, através dos programas televisivos infantis e do próprio comportamento dos pais. A criatividade e espontaneidade vão sendo substituídas por brinquedos de alta tecnologia que, por avançar em uma velocidade intensa, produz inúmeros produtos descartáveis, acumulados nos quartos e gavetas ou acumulando os lixos da cidade.

Nesse processo, criam-se outros graves problemas. A natureza é uma das grandes afetadas, pois o consumo inconsciente gera danos irreversíveis. A devastação e exploração inconsequente de minerais, plantas e vegetais, assim como de animais, na condição de matéria-prima dos produtos de consumo, não têm respeitado o seu ciclo natural e a própria capacidade de regeneração. Isso sem falar das formas de produção que se utilizam de mão de obra escrava, a serviço dessa inconsciência generalizada.

É que, apartados do ser que somos, em favor do ter, não nos sentimos parte da grande teia universal. O resultado é que a própria natureza se volta contra a humanidade, não como vingança divina, mas como resposta à nossa forma de se estabelecer e viver no mundo. As mudanças climáticas e desastres da natureza nos dão conta disso.

Os hábitos também vão sendo afetados com o passar do tempo. Antigamente o domingo era o dia dedicado à integração familiar, aos cultos religiosos e ao lazer. Hoje tudo isso vai sendo substituído pelos passeios nos shoppings. Claro que não podemos ficar estagnados no tempo, que as coisas mudam e temos que acompanhar o avanço, mas isso não pode servir para nos eximir de uma reflexão mais profunda a respeito de nossos hábitos. Estarão eles a serviço da alma , do ser que somos, ou de uma personagem que construímos que não tem noção do próprio valor?

Quando Midas percebeu que o seu desejo era uma maldição, solicitou a Dionísio que desfizesse o encanto. Dionísio orientou-o a seguir até a fonte do rio Pactolo e mergulhar todo o corpo, podendo retornar à vida normal depois disso.

Aproveitando o desfecho do mito, talvez devêssemos voltar às fontes da nossa própria origem, mergulhar de forma profunda em nosso inconsciente, e desbravar as nossas próprias riquezas. Reconhecendo a nossa filiação divina e a finalidade sublime da existência, o ser certamente terá prioridade sobre o ter, pois como já nos ensinava o Mestre sublime, de que valerá ao homem ganhar todo o mundo e perder a alma?

Autor: Cláudio Sinoti;
Fonte: Jornal Correio Espírita em agosto de 2014.




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