Pode um cão passar a frente de seu dono na senda evolutiva?

Alguns irmãos espíritas, quando deparados com questões como a que serve de título a este estudo, oriundas de não espíritas que amam os animais, pensam não haver resposta para elas na Codificação, sentindo-se como que perdidos e limitando-se a dizer aquilo que religiosos não espíritas sabem também dizer, qual seja, que “só Deus sabe”.

Ocorre que, se, por um lado, seria humanamente impossível que Kardec conseguisse, por mais ajuda que tenha tido da espiritualidade superior, compilar em apenas cinco volumes toda a sabedoria disponível para a Humanidade no século XIX e por todos os séculos posteriores, por outro, ele logrou, com suas palavras e atitudes, legar-nos um conselho providencial para que tudo pudéssemos estudar à luz do ensinamento dos Espíritos. O conselho foi que submetêssemos tudo que víssemos ou ouvíssemos aos crivos da razão e da sensatez.

Usando, pois, as ferramentas que Kardec nos orientou a usar e tendo a nosso dispor os sábios ensinamentos da Codificação, as informações contidas nas obras sérias subsidiárias e o que tem a nos dizer o atual estágio do conhecimento científico, tentemos responder à questão-título.

Comecemos analisando o significado da divisão entre os reinos animal e hominal. O mito de Adão e Eva, como comentamos em artigo publicado na edição de outubro de 2004 da Revista Internacional de Espiritismo, pode ser entendido como a nossa passagem do reino animal para o hominal. Hominídeos que éramos, vivíamos felizes no éden da ingenuidade até que provamos do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, isto é, quando adquirimos a consciência moral, passando a ser responsáveis por nossos atos e ficando, dessa forma, submetidos à Lei da Causalidade.

Ao contrário da consciência moral, o livre arbítrio, a inteligência e as formas mais primitivas de consciência não surgem quando a alma entra no reino hominal. Essas características da mente surgem e se desenvolvem após a individualização da alma, o que ocorre em certo estágio do reino animal, estágio esse que a ciência não nos oferece, ainda, um critério para identificar. A identificação de cada caso, entretanto, é possível pela simples observação de comportamento dos membros de cada espécie animal. Pois bem, nas espécies animais cujo princípio inteligente já está individualizado, o bom senso nos diz que cada membro delas evolui à sua maneira, uns de forma mais lenta e outros mais rapidamente, algo que, sem jamais ter pensado no assunto, qualquer dono de animal nos dirá se perguntado a respeito. Assim, se um cão de uma determinada raça utiliza o livre arbítrio apenas para obter benefícios em proveito próprio, outro, da mesma ou de outra raça, pode usá-lo para agir em benefício de um seu igual ou do ser humano que entende como seu líder e protetor e que se diz seu dono (como se pudéssemos ser donos de outro ser vivo!). Do mesmo modo, um animal de uma espécie individualizada pode resolver dificuldades utilizando sempre a abordagem de tentativa e erro enquanto outro, da mesma ou de outra espécie, pode já utilizar, às vezes, a aprendizagem “por insight”, desenvolvendo sua capacidade de raciocínio.

Além da consciência moral, as obras espíritas também informam ser o pensamento contínuo uma característica conquistada quando da entrada no reino hominal. Essa conquista, no entanto, se, por um lado, permitiu ao homem grande desenvolvimento do raciocínio e, conseqüentemente, portentoso avanço na ciência e nas tecnologias, por outro, tornou para ele extremamente difícil a introspecção, os estados meditativos e os desdobramentos espirituais necessários à busca do auto-conhecimento e ao exercício mediúnico. Assim, o pensamento contínuo não nos parece uma condição essencial ao ingresso no reino hominal, o que talvez seja o caso, isso sim, de um pensamento em ritmo adequado às necessidades da espécie.

Continuando nossa análise, passemos ao que nos diz a Codificação sobre os diversos mundos habitados. Segundo ela, quanto mais evoluídos os mundos, mais evoluídos os seres que neles habitam em seus diversos reinos. Assim, os animais de um mundo celeste são mais evoluídos que os de um mundo feliz que, por sua vez, são mais evoluídos que os de um mundo de regeneração e assim por diante. No entanto, por mais evoluídos que sejam os animais que vivem nos mundos celestes, o fato de eles serem animais é evidência bastante de que eles ainda não entraram no reino hominal. Mas, se não há outra etapa para eles serem animais após terem tudo aprendido em um mundo celeste, a única hipótese que resta é de que, após nada mais terem a aprender como animais em mundo algum, eles voltarão como membros do reino hominal em um mundo primitivo, para começar o ciclo novamente, desta vez objetivando chegar em um mundo celeste às portas da angelitude.

Voltemos, agora, à pergunta que serve de título a este artigo. Suponhamos que o homem que se julga dono do dito cão seja um Espírito ignorante que não se importa com suas faltas morais nem com os vícios que possui. Um Espírito pode assim permanecer por muitas existências e, mesmo quando desperta para a necessidade de melhorar, pode fazer pouco esforço nesse sentido, qual aluno relapso e negligente que não se importa com as notas baixas, com as punições nem com a reprovação. O cão, por outro lado, por ser um indivíduo, não está limitado a acompanhar para sempre a evolução da espécie a que hoje pertence e, por viver cerca de um quarto da vida de um humano, poderá reencarnar quatro vezes mais que seu dono. Se usar de seu rudimentar livre arbítrio e de sua tímida inteligência com acerto, em pouco tempo estará partindo para um mundo mais evoluído para viver em espécie semelhante à dos canídeos terrestres, mas em estágio cognitivo mais adiantado.

Assim como ocorreu conosco em nossa caminhada neste planeta, o “cão” irá também, lentamente, mudando de postura e de corpo. Andará provavelmente sobre as patas traseiras transformadas em pernas e utilizará as dianteiras transformadas em braços para construir e manipular as coisas. Pernas e braços provavelmente diferentes dos nossos, mas pernas e braços mesmo assim. Não mais necessitará de uma poderosa mandíbula quando incluir vegetais em sua dieta. Mudará, portanto, sua arcada dentária. Não mais necessitará de um olfato tão apurado por não mais depender dele para a sobrevivência, fazendo com que seu focinho seja reduzido. Sua caixa craniana crescerá para abrigar um cérebro igualmente em crescimento. E assim por diante. Decorridos alguns bilhões de anos, quando alcançar o reino hominal após completar seu ciclo no reino animal de um mundo celeste, ele guardará, provavelmente, traços inequívocos de sua origem, mas terá adquirido, também, perceptível semelhança física conosco (se compararmos as reconstituições das primeiras linhagens de hominídeos a partir de seus esqueletos, obtidas pelos paleoantropólogos, com o homem moderno, veremos o que seis bilhões de anos são capazes de fazer em termos de evolução no corpo físico de uma espécie).

Continuando a acompanhar nosso diligente “ex-cão”, veremos que ele poderá acelerar sua evolução no reino hominal se for bem sucedido em suas escolhas e dedicado em sua busca de aperfeiçoamento podendo ser alçado a viver em um mundo de provas e expiações em época em que seu antigo dono, exilado de uma Terra alçada a mundo de regeneração, esteja vivendo em algum outro mundo igualmente de provas e expiações.

É evidente que nosso “canídeo inteligente”, por guardar em seu corpo físico registros de sua herança canídea, será forçosamente diferente dos humanos terrestres e não poderá encarnar em mundo onde a espécie mais inteligente seja de humanos oriundos da Terra, mas em outro mundo de provas e expiações onde a espécie mais inteligente tenha corpos semelhantes ao seu.

No entanto, sob o olhar de um observador que possa enxergar os dois mundos, ele poderá flagrar em dado momento o canídeo inteligente ultrapassar na senda evolutiva aquele que fora seu dono milhões de anos antes, quando ambos residiam na Terra.

A resposta que a lógica e o bom senso dão à questão que serviu de título a este artigo é, portanto: sim, pode.

Autor: Renato Costa

Artigo publicado originalmente na Aurora, Revista de Cultura Espírita, Ano XXVIII, no 112/2009



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